Como as interpretações de Paulo sobre papéis de gênero
se alinham ou divergem das realidades culturais contemporâneas?
As interpretações de Paulo sobre os papéis de género apresentam uma complexidade que se alinha e diverge das realidades culturais contemporâneas, dependendo da perspetiva teológica e do contexto em que são analisadas. O trabalho de Valdeci Fidelis explora esta tensão através da sua teologia das "duas eras".
Alinhamento e Divergência na Perspetiva Paulina:
1. Princípio Fundamental de Igualdade em Cristo (Alinhamento com Valores Modernos):
◦ Gálatas 3:26-29 é uma passagem crucial que Paulo utiliza para instruir que a salvação é pela fé em Jesus Cristo, sem distinção de raça, estatuto social ou género. Ele declara: "não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todas vós sois um em Cristo Jesus". Este é um princípio bíblico de grande valor que, pelo seu impacto, deve guiar todas as outras orientações de Paulo, superando a área da soteriologia para abranger as relações sociais dentro da igreja.
◦ Para Paulo, na "nova era" inaugurada por Cristo, as distinções humanas são rompidas, e as pessoas são completamente niveladas e unidas em Cristo, tornando-se "um". Esta unidade e igualdade fundamental em Cristo é um valor que se alinha com os direitos igualitários e a dignidade das mulheres nas sociedades ocidentais contemporâneas.
◦ As passagens que mencionam mulheres em posições de liderança e ministério no Novo Testamento, como Febe (diaconisa e patrona), Priscila (que ensinava com Áquila) e as profetisas, também demonstram que Paulo, na prática, trabalhava com mulheres em funções importantes no Reino de Deus.
◦ A crença de que o Espírito Santo capacita homens e mulheres com dons ministeriais, sem fazer aceção de pessoas, sugere um alinhamento com a ordenação feminina, pois restringir o ministério com base no género limitaria o potencial da igreja.
2. Acomodação Cultural e a Teologia das "Duas Eras" (Divergência Temporária):
◦ Paulo percebia a existência de duas eras: a "era antiga" (ou atual), que procedia da queda de Adão e era dominada pelo pecado e pelas culturas humanas, e a "nova era" (ou Reino de Deus), inaugurada por Cristo com a sua morte e ressurreição. A Igreja vive nesta tensão, entre os princípios elevados da nova era e a necessidade de conviver com as culturas da era antiga.
◦ Em passagens como 1 Coríntios 11-14 e 1 Timóteo 2:8-15, Paulo estabeleceu restrições à atuação das mulheres na igreja, especialmente na área da liderança e do ensino pastoral. Estas restrições eram baseadas na cultura fortemente patriarcal da época greco-romana e judaica.
◦ O objetivo de Paulo era não colocar "pedras de tropeço culturais" à pregação do Evangelho, evitando que a igreja fosse mal vista pela sociedade e, consequentemente, prejudicando a evangelização. Por exemplo, o véu para as mulheres no culto público era uma forma de respeitar os costumes sociais e a honra feminina, evitando associações com prostituição cultual ou desrespeito ao marido. A "quietude" da mulher (grego "esukia") pode ser interpretada como "tranquilidade" ou "calma" em vez de silêncio absoluto, permitindo que as mulheres aprendessem e profetizassem, mas sem assumir uma postura de domínio ou ensino que desafiasse as normas sociais do momento.
◦ A abordagem de Paulo para a subordinação da mulher pode ser vista de forma análoga à sua abordagem da poligamia e da escravidão. Ele tolerava provisoriamente certas práticas culturais enquanto lançava as bases para alcançar um ideal ético bíblico futuro. Ele não aboliu diretamente a escravidão, mas transformou a maneira como senhores e escravos se relacionavam em Cristo, minando a base ideológica da escravidão.
3. A Evolução Cultural e o Legado de Paulo (Divergência Passada, Alinhamento Presente):
◦ Os textos indicam que as sociedades ocidentais, influenciadas pela tradição cristã, sofreram grandes alterações nos séculos pós-Novo Testamento. Elas firmaram a monogamia, eliminaram a escravidão e concederam direitos igualitários às mulheres, até mesmo em posições de chefes de Estado. Estes progressos sociais são vistos como conquistas que derivam, em grande parte, dos princípios do Reino de Deus que Paulo defendeu.
◦ Assim, o que nos dias de Paulo constituía uma "pedra de tropeço" para o Evangelho (como uma mulher falando em público ou liderando homens) hoje, na maioria das sociedades ocidentais, não só não é um problema, como o oposto – proibir a mulher de tais coisas – pode ser uma "pedra de tropeço".
◦ Portanto, a interpretação de Paulo hoje deve levar em conta que as restrições bíblicas à mulher no ministério pastoral eram ligadas às tradições das sociedades da época. Com a mudança dessas tradições e a conquista dos direitos igualitários pelas mulheres, as exceções paulinas para o ministério pastoral feminino caíram por terra.
Em resumo, a teologia paulina, com o seu princípio de igualdade em Cristo e a sua visão de duas eras, fornece um quadro para entender como as suas instruções específicas se relacionavam com as realidades culturais do seu tempo. Embora Paulo fizesse acomodações temporárias a essas culturas para não prejudicar a evangelização, os princípios mais elevados da "nova era em Cristo" que ele proclamava são hoje vistos como a base para a igualdade de género que muitas sociedades ocidentais agora valorizam, permitindo a ordenação de mulheres ao ministério pastoral. No entanto, a aplicação exata destes ensinamentos ainda é objeto de debate entre teólogos.
Quais livros paulinos orientam o ministério?
Os livros paulinos que oferecem orientação sobre o ministério, especialmente no contexto dos papéis de género na igreja, incluem as epístolas aos Gálatas, 1 Coríntios, 1 Timóteo, Romanos, Tito, Filipenses, 2 Timóteo, Efésios, Filemom, 1 Tessalonicenses e Colossenses.
Valdeci Fidelis, em seu doutorado, foca em três textos paulinos de suma importância para a discussão da ordenação de mulheres ao ministério pastoral, que são centrais para entender a orientação de Paulo: Gálatas 3:26-29, 1 Coríntios 11-14 e 1 Timóteo 2:8-15.
Aqui está como essas epístolas orientam o ministério:
• Gálatas 3:26-29: Esta passagem é apresentada como um princípio bíblico fundamental de igualdade em Cristo, que transcende a área da soteriologia para abranger as relações sociais dentro da igreja. Paulo declara: "não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todas vós sois um em Cristo Jesus". Para Paulo, na "nova era" inaugurada por Cristo, as distinções humanas são rompidas, e as pessoas são completamente niveladas e unidas em Cristo, tornando-se "um". Este princípio de unidade e igualdade é um valor central para a vida da igreja e para a compreensão do ministério.
• 1 Coríntios 11-14:
◦ 1 Coríntios 11:2-16: Aborda a questão do uso do véu pelas mulheres no culto público. Paulo permite que as mulheres orem e profetizem, mas instrui-as a fazê-lo de acordo com os costumes sociais da época (usando véu) para não desonrar a si mesmas ou causar "pedras de tropeço" à pregação do Evangelho. Este texto demonstra a necessidade de acomodação cultural para não prejudicar a evangelização, enquanto ainda reconhece a participação ativa da mulher no culto.
◦ 1 Coríntios 12: Discute os dons espirituais, afirmando que o Espírito Santo distribui dons a cada um como quer, sem restrição de género, implicando que homens e mulheres são igualmente capacitados para o ministério. O objetivo é a unidade do corpo de Cristo, onde todos os membros têm igual cuidado uns pelos outros.
◦ 1 Coríntios 14:34-35: Contém a instrução para as mulheres "ficarem caladas nas igrejas". Esta passagem é frequentemente citada para restringir a participação feminina na liderança, mas é objeto de intenso debate. Algumas interpretações sugerem que se refere a interrupções específicas no culto, a falsos ensinos ou a uma postura de domínio que desafiasse as normas sociais da época, não a um silêncio absoluto.
• 1 Timóteo 2:8-15: Esta passagem é crucial para a questão da liderança feminina. Paulo instrui que "a mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição. Não permito que a mulher ensine, nem que tenha autoridade sobre o homem...".
◦ O termo "silêncio" (grego esukia) pode ser interpretado como "tranquilidade" ou "calma" em vez de silêncio absoluto.
◦ A proibição de ensinar ou ter autoridade (authenteo) sobre o homem é vista por alguns como uma restrição ligada ao contexto cultural específico de Éfeso, uma cidade com forte influência do culto à deusa Diana, que envolvia prostituição cultual e onde a falta de modéstia feminina era um problema.
◦ Paulo "compensa" estas restrições com o versículo 15, que fala da salvação da mulher, sugerindo que a nova vida em Cristo lhe concede um lugar reabilitado e igualdade.
◦ 1 Timóteo 3:8-13 também é relevante ao mencionar as diaconisas (referidas como "mulheres" no versículo 11), indicando que as mulheres ocupavam posições de destaque e liderança na Igreja Primitiva, mesmo num ambiente patriarcal.
Outras Epístolas Paulinas com Relevância Ministerial:
• Romanos: Paulo saúda e elogia várias mulheres que trabalharam ativamente no Reino de Deus e ocuparam posições de liderança, como Febe, descrita como "diaconisa" e "patrona" (líder), e Priscila, que ensinava com seu marido Áquila. Ele também menciona Júnias como uma "apóstolo". Isso ilustra a prática inclusiva de Paulo no ministério.
• Filipenses: Paulo menciona Evódia e Síntique que "trabalharam comigo no evangelho" (4:2-3), destacando a colaboração feminina na evangelização.
• 2 Timóteo: Nesta que é a última carta de Paulo, ele continua a encorajar Timóteo à firmeza e fidelidade no ministério, e saúda Priscila e Áquila, reafirmando seu envolvimento contínuo na obra.
• Tito: Paulo instrui Tito sobre a organização e administração da igreja em Creta, estabelecendo qualificações para presbíteros e bispos. As suas orientações moldam a estrutura de liderança e os papéis ministeriais.
• Efésios: Embora não se foque em papéis ministeriais específicos, esta epístola estabelece princípios doutrinários e éticos para a vida da igreja e as relações cristãs (incluindo as familiares), fornecendo a base para um ministério saudável e harmonioso.
• Filemom: Esta carta, embora sobre um escravo fugitivo (Onésimo), demonstra a aplicação dos princípios cristãos de amor e igualdade nas relações sociais, transformando a dinâmica entre senhor e escravo em Cristo. Este é um aspeto do ministério que promove a dignidade humana.
• 1 Tessalonicenses: Aborda o comportamento cristão, a pureza moral, o amor fraternal e a diligência, que são elementos importantes para a conduta e o cuidado pastoral dentro da comunidade.
• Colossenses: Enfatiza a preeminência de Cristo e o comportamento adequado em todas as relações, incluindo familiares, contribuindo para uma compreensão holística da vida cristã e, por extensão, do serviço na igreja.
A teologia paulina, com a sua distinção entre a "era antiga" (dominada pelo pecado e culturas humanas) e a "nova era" (inaugurada por Cristo com princípios de igualdade e amor), é fundamental para interpretar estas orientações. Paulo, por vezes, adaptava-se aos costumes culturais para não criar "pedras de tropeço" à evangelização, mas os princípios mais elevados do Reino de Deus que ele ensinava (como a igualdade em Cristo) apontavam para uma eventual transformação dessas práticas culturais.
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